sexta-feira, 20 de abril de 2018

Rafael García Serrano: explorador de paisagens sem nome



"(...)
quisiera ser orilla de flores de ribera,
por irte acompañando, por irte embelesando.
El paisaje sin nombre de tus ojos perdidos,
el água para el sitio último de tus labios
(...)".
Juan Ramón Jiménez. A Filomena, Blanca y Rubia, Como Luna con Sol.

Os versos que citei perseguiram Rafael García Serrano, escritor espanhol nascido em Pamplona no ano de 1917, ao longo de toda a sua vida. E com razão: toda a sua obra, tida por alguns como verdadeira incitação ao combate, foi a contemplação de inúmeras paisagens sem nome vislumbradas em todos os olhos perdidos que encontrou ao longo dos anos. Olhos lânguidos de camaradas mortos na Guerra Civil, de homens maduros com esperanças renovadas, de mulheres enamoradas que, enquanto compreendiam o dever de seus amados, choravam escondidas e acendiam velas à Virgem para que eles retornassem para casa sãos e salvos. Porque a guerra que dividiu a Espanha, que dividiu os espanhóis, foi palco da vida e dos escritos de Rafael García Serrano.

Mas a divisão, claro, começou bem antes. E, na convulsa cidade de Madrid durante a Segunda República, o jovem García Serrano ouviu pelo rádio o discurso de José Antonio no Teatro da Comédia: foi o que bastou para abandonar a militância de esquerda e entregar-se à Falange Espanhola por toda a vida. O escritor pamplonês nunca abandonou o yugo y las flechas nem muito menos a honrosa estrela de alférez provisional que usou em combate pelo Bando Nacional. E isso lhe custou caro: hoje é um autor esquecido e facilmente tachado de facha por aqueles que nunca se deram ao trabalho de abrir seus livros. Mas também, justiça seja feita, por muitos que o leram: porque o ideal falangista, o anseio por uma nova Pátria e pelo heroísmo, se faz presente em todos os seus romances. Isso se pode ver desde logo no primeiro livro que publicou: Eugenio o Proclamación de la Primavera (1938). O personagem principal, conquanto levasse o nome de um seu camarada, não era um indivíduo concreto, nem mesmo totalmente verossímil. Ele era o morto, sim, o morto, "que yo -- que cada uno de nosotros -- hubiera querido ser".

Porque Eugenio, el bien engendrado, foi um arquétipo de herói para toda aquela geração de jovens falangistas de primeira leva. Logo no primeiro capítulo vemos exemplos de bravura, de exaltação e de uma abnegada capacidade de sacrifício. É no início do livro que Eugenio "escolhe" a sua morte: uma morte de soldado, de cara al sol (como diz o hino da Falange) porque não conseguiria aguentar viver naquela Espanha apodrecida e também porque, de algum modo, ele sabia que iria morrer. Mas, ainda que não parecesse, Eugenio era humano e se apaixonou. O autor nos diz que encontrou sua amada como Leandro encontrou Hero. Sem embargo esse amor foi mais uma preparação para a morte:
O sea que ya no existe el problema dulce de la personal primavera. Por cesión trágica, Eugenio otorga su personal primavera a cambio de la primicia de la sangre. Dios haga, Eugenio, camarada el bien engendrado, que la tuya sea fecunda. Eugenio ha dado el ejemplo a todos nuestros jóvenes camaradas que abandonan la novia por salir a buscar la cita arriesgada del peligro, que es más fuerte y más deseado en la hora de la vencida.
Eugenio abandonou sua primavera pessoal por outra que o transcendia. Rafael García Serrano começou a escrever esse livro em 1936 e leu-o para seus camaradas. Não é nada difícil imaginar o efeito que produziu em todos aqueles rapazes sinceramente inquietos e entusiasmados.  O personagem era como eles, como o próprio Rafael, num estado de elevação quase sobre-humano. É interessante que, no romance La Fiel Infantería (1943), o personagem Ramón também está no grupo desses grandes entusiastas falangistas; é alguém que tenta a todo momento fazer com que todos entendam as razões para estarem na guerra. Ele desejou ardentemente uma morte em combate, como um herói, mas acabou vítima de uma tuberculose e foi retirado do campo de batalha para morrer num hospital. Ramón também era como Rafael: era, na verdade, o Rafael que poderia ter sido com o fim que o escritor poderia ter encontrado. Parece que Ramón encarna as esperanças grandiloquentes do jovem falangista Rafael -- que descobriu uma tuberculose na batalha do Ebro -- e leva às últimas consequências suas frustrações de convalescente. Ramón pensava demais em si mesmo e em suas ambições:
Ramón vivía convencidísimo de que Dios pensaba en él cada minuto, porque también oía en sí mismo el hote de su gran destino. Ignoraba Ramón que los mozos así, altaneros, taciturnos, predestinados, suelen morir modestamente; que la peor señal de malogro es oír demasiado el crujido de la hierba interior.
Ramón passou da frivolidade de uma vida tranquila de estudante em Madrid (enquanto seus colegas, de ambos os lados, já ensaiavam combates) para a certeza de que havia algo maior, muito mais importante, do que uma vida pacata e prazeres fáceis. De repente a realidade caiu-lhe diante dos olhos de modo a tornar inútil tudo o que veio antes. E claro que a partir daí a necessidade de combater, de construir uma nova Espanha, passou a ser o que havia de mais importante para ele. E o que importava era vencer. Tanto que ironizou as comparações do caráter espanhol com o Quijote, que o irritavam. Porque, para ele, o velho Fidalgo da Mancha não passava de um fracassado, péssimo exemplo para ele e todos os seus camaradas. Para alguém assim a morte na cama de um hospital só poderia representar um fracasso:
Pero Ramón, Ramón predestinado, Ramón superior, Ramón gibelino, Ramón litigando ante el Dios de los acampados, Ramón alférez, Ramón con su historia, Ramón ha llegado ya -- piensa, desobedeciendo al médico --. Ya no duda, ya no se desespera, ya no es altanero: ya sólo es un resignado. Lo que jamás hubiese querido ser: un resignado. Algo así como un vencido que no se rebela, que cierra los ojos y codicia el mazazo definitivo. La resignación -- ¿verdad, Matías? -- es un artificio para ocultar la derrota. Seguramente que en cuanto tenga un minuto libre el activo burócrata, Ramón habrá terminado y nadie sabrá qué universo de sueños nutría y qué mochila de ambiciones llevaba a la espalda mientras defendía su paso con las manos armadas. El mundo -- la derecha en las aceras, los domingos por la tarde, las capitanías, el servicio de los demás, una a una, la chica de al lado --, el mundo es de los fuertes. <<Y yo -- susurra Ramón -- he dimitido de fuerte porque no muero como los fuertes>>. Y se despedía de ellos.

Sua tristeza de vencido que não se rebela foi como a de Don Quijote ao ser derrotado pelo Caballero de la Blanca Luna e sua morte foi como a de Alonso Quijano, que se desculpou com Sancho por tê-lo arrastado para tantas e tão "insanas" aventuras. Se fez igual, no fim da vida, ao personagem que tanto desprezava. Mas nosso autor, claro está, sobreviveu para contar a história desse desdichado Ramón, do apaixonado Miguel e do despreocupado Matías. E também para falar de Pamplona. De certo modo pode se dizer que a bela cidade é a personagem principal do romance Plaza del Castillo (1951), cuja história nos é narrada entre os dias 6 e 19 de julho de 1936, e mostra um pouco da preparação para o esperado Alzamiento que começou no dia 18 e teve sua mobilização em Pamplona no dia 19, depois do último San Fermín antes da guerra. A própria festa tem um significado muito importante para compreender a unidade da Espanha e a dor causada pela sua ruptura:
Pensaba Joaquín, mirando en torno, que la diversidad se unificaba alrededor de la fiesta cristiana. Los buenos y los malos, los ricos y los pobres, los listos y los tontos, los analfabetos y los sabios, los guapos y los feos, encontraban en el fondo de su alma cristiana la honda ligadura de una unidad cada día más difícil, cada día más cuarteada por las circunstancias. Entró Javier García con varios de su cuerda, el vendedor de Mundo Obrero, otro que pasaba por matón profesional y un par de estudiantes, y Joaquín se daba cuenta de que también ellos, esos cinco que entraban, estaban cogidos por la magia unitiva de la fiesta, por el légamo cristiano de sus corazones, por aquellas preces de la madre, por siglos de catolicidad en la sangre, y su blasfemia era cristiana y sus ganas de quemar iglesias eran cristianas y ellos se sabían herejes porque también conocían o intuían una simple y hermosa ortodoxia. Era la rabieta contra Cristo, la pataleta de los desesperados que no saben o no quieren comprobar como Cristo, solamente Él, puede ser su centurión, su amigo, su camarada.
Em um sublime parágrafo García Serrano mostra os fundamentos da unidade espanhola e a autêntica razão de sua ruptura. Ele sabia que aqueles outros homens, seus irmãos e ao mesmo tempo inimigos, blasfemavam en católico -- como dizia o Padre Castellani -- porque conheciam os símbolos da fé e sua importância: sabiam exatamente o que detestavam e o que precisavam destruir. Até em seu ódio existia solenidade. Eram bem diferentes de Luis Murguía, aquele personagem de Pío Baroja para quem os símbolos não significavam absolutamente nada, pois lhe eram completamente indiferentes. E a verdade é que, pasmem!, durante os anos do regime do General Francisco Franco alguns consideravam que os romances de García Serrano não deviam ser levados em consideração porque tratavam bem demais o inimigo. Isso é verdade. Porque o autor sabia que o outro lado estava composto por espanhóis, por homens "que decían madre igual que tú", que se comunicavam na mesma língua, que empregavam as mesmas expressões para se referirem às experiências comuns. Mas os burocratas e ideólogos não podem entender isso: para eles só existem as ideias e os planos, mas não o homem concreto que, por desgraça, pode estar do outro lado. E a realidade seria baixa, rasteira, sem demasiadas complicações. No entanto, como percebia o jovem Felisín:
El pecado estaba en torno, pero una atmósfera zafia lo hacía repugnante para cualquiera que tuviese mediano gusto. Sucedía, simplemente, que hasta los pregoneros de una virtud sin sustancia, sin heroísmo, sin belleza y sin interés, formaban en la tribu de gustos soeces, de mal estilo, y esa falta de un alto y claro estilo, de una manera de ser entera y verdadera, hacía de todos y cada uno de los españoles gentes sin vuelo, sin raigambre, aburridas y desesperanzadas. El gran acuerdo nacional, el programa común de izquierdas y derechas, de nobles y plebeyos, consistía en agarbanzar más aún la existencia, en esculpir en corro. Quedaban unos cuantos locos, pero ¿qué podían hacer?
É verdade: o que poderiam fazer esses loucos sensíveis e anelantes de beleza e sentido? Talvez escrever alguns livros e dar testemunho com a própria vida, como fez Rafael García Serrano até 12 de outubro de 1988, quando faleceu. Penso que ele sempre carregou com orgulho a estrela de alférez provisional porque se considerava um "soldado da pluma", tanto quanto Meersch se considerava seu operário.  E também porque quis -- e conseguiu -- mostrar que o sangue e a terra estão atrelados no homem, em suas raízes mais profundas. Isso fica bastante claro na belíssima visão que estampou da sua amada terra de Navarra. Transcreverei suas palavras para finalizar este texto:
(...) desde la raza rubia y primitiva de las montañas, hasta la raza indomable, ibérica, morena, de la Ribera, todo lo tiene Navarra, compendio geográfico y espiritual de España, resumen y cifra de la Patria hermosa. Como ella conserva su antiguo sedimento romano y guarda a un tiempo, en su parte vascongada, el ánimo arriscado y montaraz de los que ni Roma doblegó. Las atalayas fronterizas, las aventuras de moros, los monasterios del Pan, el Vino y las letras. No fue en vano vía de peregrinaje, paso obligado hacia la tumba del Señor Santiago, y ahí está el alma católica de un pueblo que recuerda el fervor andariego de quienes cruzaron el mundo para rezar ante el Apóstol jinete. Los pasos de Roncesvalles, que recogieron el rumor europeo de su época, dieron también la cara por la Independencia, y allí hincó el pico la caballeresca historia del cuerno de Roldán, que ni astilló el fragante burladero de las montañas. En Pamplona fue herido el capitán Loyola, a quien Dios puso así en la jefatura de los ejércitos que habrían de hacer un Mühlberg teológico. Y a la vez, en Javier, tierra intermedia y adusta, un hombre joven recogería el ímpetu conquistador de España para transformarse en un Hernán Cortés a lo divino: en San Francisco Javier, evangelizador del Japón. Navarros, rojos carriquiris, eran los toros que Orison lanzó sobre Amílcar, con el rojo fuego de la sangre y las rojas y alucinantes hogueras en el testuz, y navarros eran los toros que Altamirano llevó a Toluca, los toros conquistadores de América, y navarra es la suerte de torear a pie y esa fase primera y valerosa de agarrar al toro por los cuernos.