"Es verdad que yo sufro; pero oídme:
¿qué me importa sufrir si soy poeta?"
Armando Buscarini. Orgullo.
Juan Manuel de Prada disse em diversas oportunidades que o poeta boêmio Armando Buscarini é seu anjo da guarda literário. E assim podemos ver em seu livro Las Máscaras del Héroe, onde o pobre louco é retratado com seus tormentos causados pela sífilis. De Prada tem grande carinho pelos escritores malditos, com quem se identifica chamando a si mesmo um "apestado" dentro do mundo literário moderno. E ele é, sem dúvida, bem diferente dos outros escritores que fazem sucesso. Seus escritos são capazes de chocar progressistas e conservadores, ateus militantes e carolas sentimentalistas ("meapilas"). Ele também tomou para si o combate que foi de Léon Bloy e do Padre Castellani: o combate ao farisaísmo.
Penso que se pode aplicar a ele aquilo que disse Georges Bernanos: "minha obra sou eu mesmo". O mergulho na boemia madrilenha de princípios do século XX (Las Máscaras del Héroe); a visita aos escombros da consciência que queremos esquecer e a miséria de uma degradação viscosa que, apesar de tudo, ainda pode ser resgatada (La Vida Invisible); o horror ante o abismo que podemos alimentar em nossa alma que, como um buraco negro, é capaz de arrastar quem se aproxima (Me Hallará la Muerte); o drama daquele que perde a consciência dos próprios atos e, acreditando que errou em tudo, só pode carregar a culpa até tirar todos os véus que envolvem sua alma (El Séptimo Velo); o triste conflito entre a santidade quijotesca e o ressentimento de quem não consegue abandonar os próprios defeitos e não ama nem se deixa amar por Deus (Castillo de Diamante); a resistência heróica de homens miseráveis que, em meio à ruína, se esquecem de si mesmos e só podem pensar em servir a algo que os transcende (Morir Bajo tu Cielo); e o dilema da relação entre uma vocação afogada e outra ainda incipiente, cheia de esperanças e fantasias (Mirlo Blanco, Cisne Negro). Esta é uma pequena e deficiente síntese da obra de Juan Manuel de Prada, de sua vida mesmo.
Me Hallará la Muerte, por exemplo, nasceu depois de um período de onze anos em que Juan Manuel de Prada, participando ativamente de tertúlias políticas no rádio e na TV, deixou de escrever. E, nesse romance, o personagem Antonio usurpa a identidade de Gabriel, oficial da División Azul que viveu e morreu como um herói; enquanto ele, covarde, caiu numa espiral de erros terríveis que destruíram as vidas de todas as pessoas que Gabriel amava e que por fim acabou destruindo-o também. Ele se afundou numa lama terrível - algo recorrente nos personagens do escritor - e constatou com asco todas as vidas quebradas por suas atitudes, especialmente a sua. Então se recordou de um amor de juventude, que talvez poderia salvá-lo:
A veces, en su relación superficial o crudamente física con Paloma, en su intercambio de palabras y excreciones indiferentes, encontraba inopinadamente un vestigio de ternura vergonzante, una traza apenas perceptible de humanidad, como si su alma apestada no estuviese corrompida del todo, como si aún guardara una reserva o un depósito último de vitalidad espiritual que aguardase otro milagro de la primavera. Paloma, por supuesto, no iba a avivar ese depósito, porque le faltaba curiosidad para indagarlo, pero tal vez otra mujer sí pudiera en el futuro. Tal vez Carmen, aunque se hubiese convertido en un trasto viejo; o precisamente por ello mismo.
Porque aquele traste velho, aquela mulher acabada e gastada pela vida, tão sofrida quanto Antonio, seria sua última esperança de deixar tudo para trás. Mas como deixar para trás a morte de uma jovem que acreditou ter-se deitado com seu próprio tio e engravidado? Como deixar para trás o leal e honesto amigo que, mesmo prestes a ser pai, foi chantageado a fazer um aborto que culminou em seu suicídio pela imensa culpa? Como deixar para trás todas as almas que se quebraram para que ele pudesse seguir adiante? E assim Juan Manuel de Prada nos ensina que de um mal nunca pode vir um bem. Sua linguagem é dura, direta e belíssima. Por estar embebido nos autores do Siglo de Oro é sempre necessário, mesmo para um espanhol (eles assim o dizem nas entrevistas), lê-lo com um bom dicionário à mão.
Os romances de Juan Manuel de Prada nos lembram de uma realidade que cada vez mais é posta de lado: a do pecado. O pecado está presente em todos os seus personagens porque também está presente no mundo; e a degradação, a tristeza e o desespero são suas consequências. O pecado se tornou a Vida Invisível que o autor nos narra nas excepcionais primeiras linhas de seu romance que tem esse mesmo nome:
Hay una vida invisible, subterránea como el veneno, por debajo de esta vida que creemos única e invulnerable, o quizá sobrevolándola, como una ráfaga que parecía inofensiva y que, sin embargo, se inmiscuye en los huesos, dejándonos su beso estremecido. Cuando esa vida invisible nos roza sentimos por un instante que la tierra nos falta debajo de los pies. Es una impresión fugaz, un sobresalto que apenas dura lo que dura una extrasístole, lo que dura la impresión de caída en las fases de duermevela que preceden al sueño, lo que dura el contacto furtivo de la culpa cuando mentimos atolondradamente, sin saber siquiera que estamos mintiendo y, desde luego, sin vislumbrar las consecuenciais de esa mentira.
Essa Vida Invisível que tentamos apagar junto com nossa consciência é o abismo que precisamos forçosamente olhar, o abismo que está em nós e que nos causa horror: o abismo que aqueles excessivamente brandos, que se creem sempre bons ou "não tão ruins assim", se recusam a admitir que exista. E o fazem porque a miséria e a degradação chocam, porque a certeza de que se está na lama é aterradora; então preferem negar essas coisas "obscurantistas" e exageradas. As palavras do Padre Castellani sobre Baudelaire também podem ser aplicadas a Juan Manuel de Prada:
(...) ciertamente no es una lectura para chicas que se alimentan de bocadillos y de novelas yanquis, ni para chicas en general, ni para beatos, ni para burgueses, ni para burros, ni para sacerdotes no advertidos, ni para hombres sin percepción artística, ni para la inmensa parroquia de la moralina y de la ortodoxia infantil. Asomarse al abismo no es para todos (...).
Não trago essa advertência do Padre Castellani para assustar a ninguém, mas para dizer que é preciso coragem para suportar o soco no estômago que costumam ser os romances de Juan Manuel de Prada. Suas obras e personagens nos assustam e apenam. Não simplesmente porque lhes acontecem coisas terríveis que nos entristecem, mas porque aquilo também é, de certo modo, parte de nossa vida. Seus sofrimentos e erros também são os nossos, assim como suas consolações:
Con la cabeza de Sor Lucía reclinada en su pecho, Novicio creyó estar viviendo uno de esos momentos privilegiados de la vida, cuando el alma se imbuye de una reconfortante sensación de gracia, sin patetismos rimbombantes ni sentimentalismos estridentes. Seguramente los ilongotes seguirían rondando por allí cerca, seguramente en los pantanos seguirían agazapados los caimanes, seguramente los hombres seguirían matándose en algún confín del planeta, pero en aquel paisaje que se extendía ante su mirada no se tenían noticias sobre la desgracia del género humano.
A serenidade da alma a que se chega pelo amor. Um amor que, em Morir Bajo tu Cielo, é impossível e precisamente por isso casto até o fim. Um amor capaz de mudar e fazer amadurecer dois personagens, dois inimigos, cujas vidas, completamente distintas e até então sem finalidade, mudam por completo e ganham um novo significado na presença de Sor Lucía, criatura encantadora com um sorriso capaz de desarmar a qualquer um. Autêntica consolação em meio à miséria, sem nenhum traço de sentimentalismo patético. Porque o autor sabe que o sentimentalismo, terrível veneno para religião, também é um veneno fatal para o amor.
Outro veneno fatal para o amor é a melancolia exagerada, aquela que apodrece em nossa alma e pode tornar-se ressentimento. Eu disse no início que Juan Manuel de Prada se considerava também um maldito, por ser capaz de compreender e apiedar-se dos outros malditos. E isso aparece nas suas obras. Penso que a pobre Princesa de Éboli, antípoda de Santa Teresa, tenha sofrido um dos fins mais tristes de seus romances. Tanto que, quando ela por fim se entrega à ambição mundana sem esperanças de consolo para a alma, o autor abaixa a cabeça e não nos deixa ver o resto da história. Já não havia mais o que contar. Mas é notável a percepção que sua encantadora e quijotesca Santa Teresa tem de Ana de Mendoza:
Teresa había reconocido enseguida en Ana a una mujer - como ella misma - demasiado inquieta y original para un mundo que las prefería rutinarias y mansas; y en donde la que no se aviniese a aceptarlo no tenía otro destino sino llorar en secreto y resignarse a que sus cualidades y virtudes se malograran. A Teresa le había salvado de ese malogramiento Su Majestad, amándola al menos tanto como a María de Magdala o a la samaritana que le dio de beber; Ana, en cambio, no había encontrado esa ayuda, tal vez porque ella misma la había rechazado, tal vez porque no había sabido reconocerla. Sea como fuere, el caso es que a la postre el soplo divino no se había derramado sobre su alma, o al menos ella no lo había notado; y, por despecho o por tristeza, viendo que su alma no se llenaba de sol y de pájaros, Ana había permitido que la invadiesen las tinieblas y las sabandijas que nos llenan de bilis. Porque el alma, aunque no esté llena de humores como el cuerpo, no puede permanecer vacía; y cuando no la ocupa quien la creó, acaba tarde o temprano siendo pasto del que quiere destruirla.
É emocionante a cena de Ana, esfarrapada e enlouquecida pela dor da viuvez e do desespero, chorar como criança sobre as pernas de uma Santa Teresa já velha e cansada, cada vez mais próxima de Sua Majestade enquanto ela, Ana, se afogava em seu abismo de tristeza. O drama de Ana, a Princesa de Éboli, é o de não ter conseguido. E, por isso, Juan Manuel de Prada se apieda dela. E também nós, seus leitores. Ao fim de cada romance sobrevém uma melancolia; não aquela mortal, mas ainda outra: uma doce, tranquila, que talvez tenha algo que ver com o mistério da vida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário