terça-feira, 8 de maio de 2018

Reflexões sobre a Justiça


Decidi publicar aqui este interessante texto que aparece no livro Los Papeles de Benjamin Benavides, do Padre Leonardo Castellani. O texto é atribuído a Don Benya e o nome Aureliano Martínez Robles é um pseudônimo de que ele se valeu para poder publicá-lo. O pobre Don Benya tinha muitos problemas na história narrada por Castellani, tantos como seu criador. Quanto a mim, não tive valor para me arriscar a traduzir os versos que aparecem.

"A injustiça é o dissolvente mais tenaz que existe.

Uma injustiça não reparada é uma coisa imortal.

Provoca naturalmente no homem o desejo de vingança, para restabelecer o equilíbrio rompido; ou ainda a propensão a responder com outra injustiça; propensão que pode chegar à perversidade, através da inclinação que chamam hoje ressentimento.

É, pois, exatamente, um veneno moral.

Só há uma maneira de não sucumbir aos seus efeitos: ela consiste em aproveitá-los para robustecer em si mesmo a decisão de não ser jamais injusto com ninguém. Nem sequer consigo mesmo!
 
Com a ajuda dos sofrimentos que a injustiça sofrida provoca na alma -- que nos seres de grande temperança moral são extremos --, é preciso saber ver a fealdade e a deformidade das próprias injustiças-possíveis, passadas e futuras; e da injustiça em si.

Aquele que sofreu uma grande injustiça em si mesmo, e não respondeu com outra, não precisa de muitas considerações para contemplar o ponto de Santo Inácio de Loyola: "considerar a fealdade do pecado em si mesmo, ainda que não fosse proibido". Vemos a fealdade do pecado mais facilmente quando outro nos inflige, que quando nós o infligimos. 

Devolver injustiça por injustiça, ou golpe por golpe, não remedia nada. A vingança, que dizem ser "o prazer dos deuses", é um prazer solitário e estéril. A vindita é o prazer dos deuses, assim como o quijotismo é seu esporte.

Nada mais comum em nossa época que a indignação pela injustiça: é uma de suas características. Essa indignação é natural; e ninguém dirá que seja má. Mas o remédio que se busca ordinariamente é mau, porque quase sempre implica outra injustiça.

Repartir a terra aos camponeses: para isso é preciso arrebatá-la primeiro pela violência -- e com injustiça em muitos casos -- aos boiardos. Os boiardos cometiam injustiças contra os mujiques; claro: os tinham reduzidos a um estado de primitivismo, lhes tiravam talvez o salário justo, pecado que segundo o catecismo 'clama ao céu'.

Mas o bolchevismo, que usou como instrumento político ou estribilho 'a terra para quem nela trabalha!' acabou por socializar a terra e fazer do Estado um Grande Boiardo, de mãos mais duras e coração mais petrificado que todos os outros juntos.

Pagar com uma injustiça a injustiça aumenta a injustiça. O pêndulo empurrado de um extremo vai ao outro; e começa o movimento interminável do mal, 'o abundar da iniquidade', que segundo Cristo destruiria nos últimos tempos até a própria convivência.

Esta atitude de digerir a injustiça resulta no fim a melhor vingança. Por certo, a que se propõe o ódio? O ódio se propõe -- ou busca inconscientemente, porque há ódios inconscientes -- essencialmente destruir. Que melhor vingança do que oferecer-lhe o resultado contrário, o crescimento da própria alma, a purificação e melhora da vitalidade interna?

Mas onde está a alquimia que transforma esse veneno em remédio e em alimento?

'La ponzoña más dura y obstinada
es la injusticia social...
Una injusticia que no es reparada
es una cosa inmortal...'

Sim, onde está o meio? Sêneca dizia: 'se alguém te ofende, não te vingues: se o ofensor é mais forte que tu, tem medo; se é mais débil, tem pena'.

Esta consideração, dita a um homem que está sob o peso de uma injustiça real e séria, tem a virtude de colocá-lo prodigiosamente furioso.
A forma de digerir a injustiça é um segredo do cristianismo. É a atitude heroica, e aparentemente impossível às forças humanas, de devolver bem por mal, de bendizer os que nos maldizem.

O Evangelho contém muitos segredos, muitos abismos de filosofia oral. O Evangelho eleva Sêneca às alturas da eficácia total.

As forças psicológicas do homem são limitadas e podem sucumbir a uma grande dor moral.

'Consolar o triste...' -- e isso não com palavras, mas com ajuda verdadeira, é a maior das obras de misericórdia.

Uma grande dor moral não consiste num conjunto de imagens lúgubres que se podem espantar ou afastar com reflexões, distrações ou palavrório devoto, como pensam os santarrões. É pura e simplesmente uma ferida, às vezes uma convulsão e uma tormenta, que pode descompor a alma e arrancar-lhe suas raízes.

Uma grande dor não passa nunca como uma nuvem cinzenta depois da qual vem o sol, segundo a desgastada metáfora. Penetra na alma, muda-a, se incorpora a ela e permanece já para sempre. De que forma permanece, como veneno ou como estímulo? Esse é o problema.

Um grande golpe ao qual falte o adequado lenitivo pode desmoralizar para sempre um homem, intimidá-lo, anulá-lo -- e ainda amargurá-lo e pervertê-lo. Esse é o seu efeito natural. Pensemos em Silas Marner, da grande escritora inglesa Mary Ann Evans [George Eliot].

Todos os remédios da filosofia, elaborados tão sabiamente por Sêneca e Boécio, são de efeito local; e nos casos graves são insuficientes. Só o amor cura as feridas da alma. E só um amor sem medida as feridas desmedidas.

Cristo amou a humanidade desse modo.

O amor ao próximo é o único remédio da injustiça social: mas o amor que Cristo trouxe é um amor desmedido. Ele lhe atribuiu caracteres inteiramente excepcionais: tem que ser de obras mais que de palavras, tem que chegar até a amar o inimigo, e a dar a vida pelo amigo.

E para diferenciá-lo da caridade farisaica, o Mestre apontou sua raiz, que é a injustiça, e sua flor, que é a misericórdia. 'Dais esmolas; mas abandonastes o fundamental da Lei, que é a misericórdia e a justiça...'.

Neste grande remédio contra o veneno da injustiça, que é afogá-la no amor, se cumpre talvez a promessa de Cristo aos seus discípulos: 'Et si mortiferum quid biberint, nihil eis noecbit'. Bebereis veneno e não vos fará nenhum dano. O ressentimento é literalmente um veneno.

Isto não nos foi dito, obviamente, para que bebamos cianeto e ver o que acontece, mas para que tenhamos confiança quando nos sintamos psiquicamente envenenados.

Este é o milagre que segundo Cristo fariam seus discípulos 'maiores do que os que Ele fez'. Claro que ele também o fez primeiro.

Que graça. Ele era Ele.

Amar os inimigos parece impossível psicologicamente; sobretudo quando os temos; e mais ainda quando os temos sobre nós. Não se pode apreender ao mesmo tempo um homem como inimigo e amável; e nosso amor depende de nossa apreensão. Não posso amar senão o que é 'bom para mim'.

Ademais, pareceria que isso de amar a todos destrói a atividade moral, paralisa a luta contra o mal, infunde uma apatia e uma inércia budista, transforma a sociedade numa tropa de cordeiros silencioso ou melosos.

Más é preciso advertir, a quem fizer estas objeções tolstoianas ou gándhicas, três coisas:

Jesus Cristo não disse que 'não há inimigos' como Buda; ao mandar-nos amar até os nossos inimigos, implica que existe essa grande divisão entre os homens, e não anula o natural amor aos amigos, maior que aos inimigos.

Jesus Cristo não disse: amai mais os vossos inimigos ou amai-os igual aos vossos amigos... Isso seria contra a ordem da caridade, quaisquer que sejam as expressões acaloradas dos santos, que quando tomados pela loucura da Cruz pareceriam às vezes expressar o contrário.

Jesus Cristo disse 'amai os vossos inimigos'; mas não disse: colocai-vos nas mãos de vossos inimigos.

Quando não há juízes capazes de lutar contra a iniquidade a injustiça se propaga, aumenta o ressentimento e a convivência se torna quase impossível. Isto profetizou claramente nosso Redentor: 'Porque abundou a iniquidade a caridade esfriou na maioria'. Como uma das partes da caridade é a amizade cívica, que Aristóteles explica como a base da convivência, segue que o ressentimento tornado praga endêmica coloca a sociedade em condições quase insuportáveis. Isso é o que está acontecendo hoje.

O ressentimento, essa espécie de rancor abstrato, foi bastante explicado por Nietzsche e Max Scheler para ser ignorado por alguém. Basta abrir os olhos, tropeçamos com ele a cada passo.

O 'ressentimento', assim entre aspas, não é o vulgar rancor, ódio ou despeito; é indignação mal ou insuficientemente reprimida, pela força e não pela razão, que se irradia concentricamente de objeto em objeto e de zona em zona anímica, até contaminar, coisa curiosa, o próprio entendimento. Hoje em dia há ideologias de ressentimento expostas em linguagem científica e com as maiores aparências de objetividade. Max Scheler descobriu o ressentimento nas ideologias socialistas, em muitas heresias medievais, na apostasia do imperador Juliano -- nisso o precedeu a aguda observação de São Gregório -- e até no livro De Contemptu Mundi do Papa Inocêncio II.

Mas esta definição do ressentimento e sua análise em:

Indignação por uma ofensa,
repressão violenta,
tristeza,
ânsia de vindita ou vingança,
deslocamento concêntrico a objetos afastados,
irradiação sentimental,
contaminação intelectual

são coisas de pedantes. Bergson o definiria rapidamente:
ira ulcerada ou ainda
rancor em septicemia  

Esta septicemia não tem mais penicilina que uma grande injeção de amor tão tremenda que só é possível pela Fé e pela Graça -- ajudados por intermediários humanos, como Deus costuma fazer suas cosas. 'Dios y ayuda' como dizem na Espanha.
O amor aos inimigos não exclui a luta contra a injustiça que está neles; antes a impõe.

Há alguns que têm a missão ou o dever profissional de lutar pela justiça. Seja porque ela nos alcance pessoalmente ou não, a injustiça é um mal terrível, perceptível aos que possuem o sentido moral -- sexto sentido que diferencia o nobre do plebeu -- e lutar contra ela é obra de bem comum, ainda que por vezes pareça loucura. Don Quijote teve essa loucura, que no ideal cavalheiresco, criado pela Igreja na Europa, não era loucura.

Dizia alguém:

Dios que permitiste contra
mí, la mayor injusticia
y vida nueva y caricia
me das ¿para qué? ¡Recontra!
Tu ley santa me confronta,
primero perdonaré
y después olvidaré
y habiendo vida y milicia
lucharé por la justicia
y un día veremos qué.

Hombres hay que la injusticia
no pueden tragar ni ver
pues los enferma, anoser
que luchen por la justicia
morirían de ictericia
si no luchan. Déjenlos
emboscados, que son tantos
ellos son locos o santos,
a mí me hizo de ellos Dios.

Unos locos y otros santos
son; y otros entreverados
yo nací por mis pecados
de estos que hoy ya no son tantos.
Llena de lacras y espantos
esta época no los pare
quien hallarlos deseare
no vaya a cortes de rey
porque ellos nacieron buey
¿y a dónde irá el buey que no are?

Os que têm o dever profissional de lutar pela justiça são os juízes (os juristas), os governantes (os pastores) e os soldados (os guerreiros). Desgraçadamente a época moderna transformou os juízes em máquinas, os governantes em economistas e os soldados em militares; e padecemos uma grande escassez de cavaleiros andantes.

Os cavaleiros andantes são os que têm, mais que o dever profissional, a paixão, a mania e o vício da justiça. Esta disposição natural -- seja temperamental, seja adquirida -- de por si deveria coincidir com o dever profissional; por certo hoje em dia andam os dois às vezes separados.  Assim como deveriam ser ordenados sacerdotes aqueles que têm carismas, deveriam ser nomeados juízes aqueles que têm quijotismo, como pede a Escritura (Ecl, VII-6) 'Noli quarere fieri judex, nisi valeas virtute irrumpere in iniquitates; ne forte extimescas faciem potentis, et ponas scandalum in cequitate tua'.  O juiz débil não só não faz bem, mas causa escândalo: porque se espanta diante da face do poderoso; por isso o hagiógrafo pede ao que quer ser juiz -- ou governante -- que tenha 'força para atropelar a iniquidade'; e simplesmente dissuade a todos de 'buscar ser nomeado magistrado'.

As rainhas da Idade Média pediam perdão aos leprosos pela pompa e alegria de uma época talvez mais feliz que a nossa -- pois havia rainhas santas ao invés de 'estrelas' de cinema -- beijando-lhes as chagas. Hoje em dia os leprosos têm que se contentar com autógrafos. Rita Hayworth visitou o Leprosário de Barcelona. Os jornais de hoje o contam; e contam uma anedota. Dizem que Rita (a Gilda) recorreu o lazzareto acompanhada de uma monja jovem e não mal parecida, que ali presta seus serviços. Ao sair voltou-se para ela e lhe disse:

- Irmã, eu não faria o mesmo que você faz aqui nem por um milhão de dólares.

A espanhola a respondeu com firmeza:

- Eu tampouco.

Esta anedota é muito velha: minha defunta avó já me contava quando eu ainda era criança de peito.

A repressão do natural desejo de vingança por razões intelectuais ou por amor de Deus produz na alma essa 'fome e sede de justiça' à qual se prometeu a bem-aventurança. Ela é a sublimação  do rancor e da natural paixão pela vindita; paixão pelo restabelecimento do equilíbrio moral. O ódio à injustiça padecida se transforma em horror à injustiça sofrida por outros. Os sentimentos feridos não se cicatrizam -- como acontece pelo esquecimento das feridas pequenas -- mas começam, se poderia dizer, a sangrar para cima. Por isso nosso Salvador o comparou a uma paixão tão pertinaz e lutadora como a fome.

'Isto que me aconteceu jamais cicatrizará', se costuma ouvir às vezes: 'sim, cicatrizará' é a resposta vulgar, às vezes falsa. Muitas vezes tem razão o ferido. A resposta exata é: 'Torna-te um ferido de Deus, deixa atrás os homens. Sê misticamente cruel contigo mesmo'.

 Esta ferida sempre aberta nos faz solidários da dor do mundo; nos estabelece em comunidade com todos os que sofrem; e fazer-se solidário da dor do mundo fruto do pecado foi a razão para que tomasse corpo e natureza humana o Verbo de Deus. Homem sem pecado. São Paulo dizia que levava em seu corpo os estigmas do Corpo de Cristo: e que sua vida real estava escondida com Cristo em Deus. Homem em meio dos homens, capaz de interessar-se por tudo o que era humano, cheio de virtudes sociais, ou como dizem hoje, de 'humanismo', ganhando o pão com suas mãos e pregando a salvação com sumo desinteresse e em meio a riscos e ameaças indizíveis, o Apóstolo dos Romanos, levava escondida sua chaga secreta, que era a razão de seu poder. 'Minha debilidade é a razão da minha força'. 'Cum infirmor tunc fortior sum' ('Quando sou débil é quando sou mais forte').

Nunca foi mais forte que, quando atadas as mãos, inclinou sua cabeça diante da espada do verdugo. Então foi saciada sua sede de justiça e as palavras de suas cartas, passadas a sangue, se tornaram eternas.

Tudo isto é mais ou menos sabido, quisera Deus que fosse praticado. Que esta época é a pior que existiu, disseram-no homens parecidos a nós em todas as épocas.

O que interessa seria saber o que é que sairá de tudo isto.

Pois bem, não podem sair mais que duas coisas, ou uma restauração da justiça ou a ruína total da convivência.

Ou se produz uma grande efusão de amor fraterno, que deverá ter caracteres quase milagrosos, pelo qual seja restaurada a justiça em todas as partes, acima e abaixo, na Igreja como no Estado, na sociedade e na família, na vida pública, no comércio e no trabalho, nas leis externas e no coração dos homens -- que é de onde tudo o mais brota...

Ou as atuais condições de iniquidade ufana e triunfante continuam e se multiplicam, prevalecem de mais a mais naqueles sem coração e sem lei -- 'sine afectione absque foedere, sine misericordia' -- se produz um universal e implacável salve-se quem puder e as massas egoístas e atemorizadas caem sob o poder dos tiranos violentos ou mistificadores sutis, ou desta mescla de ambos que será o Grande Imperador Plebeu; esse 'Homem da Iniquidade' que desde há dois mil anos a Cristandade apelida com o ditado apostólico de Anticristo.

Aureliano Martínez Robles."

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