Trago outro texto do Padre Castellani. Este apareceu no jornal argentino Cabildo e recebeu fortes críticas de todos os lados: alguns disseram que era muito irreverente ao tratar de um tema tão sério e outros chamaram o autor (Militis Militorum: ou Militis Militún, en criollo, pseudônimo do Padre Castellani nos artigos de imprensa) de raro y medio loco. Que o leitor veja se a tal "irreverência" está mesmo fora de lugar.
Por certo, encontrei o artigo no livro Decíamos Ayer..., que reúne boa parte dos artigos que o Padre Castellani escreveu para o jornal Cabildo.
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Eu sabia que não podia acabar bem; mas nunca sonhei que fosse sucumbir de um modo tão espantoso.
Meu conselho não lhe faltou. Foi mais ou menos este:
"É preciso partir deste princípio: é forçoso contemplar os poderosos. E não é difícil fazê-lo quando se propõe a isso. É algo indispensável. É preciso tomar os homens como eles são e não como queremos que sejam. Com o que tem poder é inútil querer bater de frente. É preciso entrar em razão.
Teu estilo de escrever é magnífico. Há somente aquelas frases. É uma frase aqui, outra lá, às vezes nenhuma, às vezes duas ou três, que irritam a muitos e que suprimidas não prejudicam em nada a beleza literária do conjunto. Também é preciso resignar-se a não tocar em alguns temas demasiado espinhosos, que de qualquer modo que os trate, inevitavelmente descontentam alguém.
Depois disso é preciso ganhar Caifás. Caifás, no fundo te aprecia. Por mais que esteja ocupado em outros assuntos, não é homem desprovido de gosto literário. Um dia disse de você: 'compõe esplendidamente. A cadência é perfeita, as metáforas são abundantes, os tropos são originais, pena essas coisas a mais que põem tudo a perder. Se este homem entrasse de uma vez com toda a alma pelo caminho que lhe indicam a lei e a voz de seus bons superiores, poderia fazer um bem imenso, sem deixar de ser um escritor genial'.
Todas as tuas parábolas são muito boas; algumas são pequenas obras-primas do gênero. És um verdadeiro gênio, te asseguro que és genial. O Filho Pródigo é uma coisa intocável, como a dos Talentos, mas aqui a doutrina já é um pouco estranha. A do Rico no inferno é bastante forte, um pouco violenta, os ricos podem se ofender com ela. A do Administrador Infiel, eu a entendo bem, mas penso que seja mais para homens inteligentes. Agora, a dos Trabalhadores na Vinha é outra coisa, penso que teria sido melhor suprimi-la. Decididamente. Uma parábola a menos não pode prejudicar a fama de um escritor já reconhecido como você. Há muitos para quem ela caiu mal, que a tomaram muito mal.
Não estamos em Nazaré, já não somos crianças. Numa grande cidade como esta, é preciso saber que além da Natureza há uma grande realidade: a política. O lírio dos campos, as aves do céu, o semeador muito bem! Lá no doce ambiente pastoril, o Reino dos Céus, o Pai Celeste, a Causa da Verdade está tão próxima, tão a mão, que parece ser possível tocá-la, tocar o céu com as mãos... Aqui é preciso contar com os mecanismos interpostos, toda a organização social com a qual também se vai a Deus, ainda que menos diretamente. Que essa organização tem falhas, é evidente: se trata de homens e não de anjos. Que tem pontos podres, supondo que assim seja, nós não os podemos curar por ora. Não temos os instrumentos".
Desde que se fechou Arcalón, víamos a sinagoga de Cesareia, o grande edifício plano entre seus andaimes como um animal dormindo. Eu lhe disse:
"Te repito que Caifás no fundo não é inacessível. Tu o desagradaste muito, o perturbaste muito (sem querer, claro), o ofendeste muito, acho até que está emagrecendo por tua causa; mas no fundo é um pontífice, um homem consagrado a Deus antes de tudo. O trabalho enorme que lhe dá o manejo dos recursos do templo, que ser humano poderia suportá-lo a não ser por Deus? Não se casou por causa disso. Caifás é acessível. Não se trata exatamente de proibir-te a pregação. Se trata somente de encaminhar a tua pregação de acordo com as normas. Não fim das contas são teus superiores e tudo o que há em ti lhes deve estar cegamente submetido; se se equivocam, eles darão conta a Deus, é uma grande tranquilidade de consciência isso de poder resignar em outro a própria consciência.
É preciso se apegar a esta ideia: a Verdade deve ser administrada. A Verdade pura não é potável ao homem. A verdade precisa de filtro, precisa de paliativos e precisa de administração. E quem deve administrá-la senão o que oficialmente foi nomeado para isso?
Tens que tomar consciência do grande florescimento religioso que representa este edifício, e todas as capelas, lecionários e adoratórios distribuídos por toda esta grande cidade pagã e turbulenta. Adorar a Deus em espírito e verdade está muito bem, mas ah! não é só espírito o homem. O dinheiro é necessário para tudo, inclusive para a religião. Não imaginas a massa de bem espiritual em conjunto que representa esse grande edifício que agora se constrói, o bem que se poderá fazer aos fiéis na casa de Deus, que dirige tão acertadamente o arquiteto Jônatas: mas isso vai custar três milhões de sextercios e tu és um homem que nunca soube o que é ganhar dinheiro. É muito bonito abrir o Livro e dizer: o profeta Isaías disse: o espírito de Deus me mandou evangelizar a aridez; vinde e eu vos mostrarei a fonte de águas vivas. Mas para dizer isso é preciso ter um grande salão. Para ter um grande são é preciso dinheiro, muito dinheiro. E o dinheiro tem que ser bem administrado. Qualidade que nosso grande Caifás, como não me negarás, tem de sobra. Hehe, é fácil desprezar os que não têm facilidade com a palavra; mas a pregação porventura é tudo? A administração é o mais necessário em qualquer sociedade humana.
Eles estão no meio da política; eu, tu, nazarenos humildes, poetas do interior, escritores de pouca monta, que necessidade temos de tocar temas espinhosos, havendo tantos temas sobre os quais escrever com gosto e satisfação de todos? Me dizes que o pregador antes de tudo deve se fazer ouvir, porque um pregador que ignoram, e nada, é a mesma coisa. E para se fazer ouvir é preciso falar do Reino, pois todo mundo hoje em dia está embalado com o famoso Reino. Muito bem. Uma coisa é falar do Reino de modo geral, como se deve falar; outra coisa é chegar aos pormenores, até aludir aos herodianos, aos hileitas, aos saduceus, e o que é mais grave, aos romanos. Ai, ai, ai! A religião não tem nada que ver com essas coisas, e a nós o que nos interessa é somente a religião. O religioso deve respirar religião, deve comer religião, deve falar religião e deve viver religião em todos os seus momentos; como fizeram nossos grandes pais os profetas, que eram pura religião ambulante. Nada mais que religião pura. Isso não ofende a ninguém.
Agora, se for verdade o que me contaram, que começaste a aplicar a ti mesmo as profecias e (algo muito próprio da tua ingenuidade) a tomar as palavras dos Livros Santos literalmente!; então, que posso dizer?, francamente, somos amigos desde a infância, e por mim não desejo repudiar tua amizade, mas há coisas que passam dos limites e que eu, sinceramente, te digo com toda a franqueza da amizade, eu não as entendo!".
Exatamente assim eu lhe disse; e que Deus me mate se minto.
...
Pobre Jesus! Eu via que por esse caminho não poderia acabar bem; mas jamais sonhei, meu Deus!, que acabaria crucificado! Grande Deus! Crucificado!
(25 de outubro de 1944).
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